segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Cornita

-Pai, o que é cornita?
-Como é que se escreve?
-Ce, o, erre, ene, i, te, a.

O pai pensou um pouco. Não podia dizer que não sabia. O garoto há muito descobrira que o pai não era o homem mais forte do mundo. Precisava mostrar que, pelo menos, não era dos mais burros. Perguntou como é que a palavra estava usada.

-Aqui diz, "a cornita da igreja..." - respondeu o garoto.
-Ah, esse tipo de cornita. É um ornamento na forma de corno, que fica ao lado do altar.
-Pra que que serve?
-Pra, ahn, nada. É um símbolo.
-Ah..

***

-Pai, usei "cornita" numa redação e a professora disse que a palavra não existe.
-O quê? Mas que professora é essa?
-Ela diz que nunca ouviu falar.
- Pois diga para ela que "cornita", embora não faça mais parte da arquitetura canônica, era muito usada nas igrejas medievais.
-Tá..

***

-Pai, a professora continua dizendo que "cornita" não existe. E diz que támbem não se diz "arquitetura canônica".
-Preciso ter uma conversa com essa professora. Essa educação de hoje....

***

-Não quero desmentir a senhora. Mas também não quero ver meu filho duvidando do próprio pai. Para começar, minha senhora, aqui está o livro que o meu livro estava lendo. E aqui está a palavra. "Cornita".
-Deixe eu ver. Obviamente, era para ser "cornija". É um erro de imprensa.
-O quê?
-Um erro de revisão."Cornija". Ornamento muito usado na arquitetura antiga. "Cornita" não existe.
-Pai, vamos para casa...
-Um momento. Um momentinho! Claro que eu sei o que é "cornija". Mas existem as duas palavras. "Cornija" e "cornita". Duas coisas completamente diferentes.
-Então me mostre "cornita" no dicionário.
-Ora, no dicionário. E a senhora ainda confia nos nossos dicionários?
-Pai, vamos embora....

***

-O que é isto, pai?
-Um pequeno tratado que fiz para a sua professora, aquela mula, ler. Dezessete páginas. Pouca coisa. Nele, traço desde a origem etmológica da palavra "cornita", no sânscrito, até a sua simbologia no ritual da igreja antes do concílio de Trento, incluindo o número de vezes em que o termo aparece na obra de Vouchard de Mesquieu sobre a arquitetura canônica. E sublinhei "arquitetura canônica", para a mula aprender a jamais desmentir um pai.
-Certo, pai..

***

-Pai...
-O que é?
-A professora leu o seu tratado.
- E então?
-Mandou pedir desculpas. Diz que o senhor é um homem muito etudito.
-Erudito.
-Erudito. Mandou pedir desculpas. a burra era ela.
- Está bem, meu filho. Pelo menos agora ela sabe com quem está tratando.

Valera a pena. Valera até as noites perdidas inventando os dados do tratado. Sabia que acabaria convencendo a mulher com um ataque maciço de erudição, mesmo falsa. Vouchard de Mesquieu. Aquele fora o golpe de mestre. Vouchard de Mesquieu. Perdera uma hora só para encontrar o nome certo. Mas estava redimido.

Luis Fernando Verissimo

Um comentário:

Elson Souto disse...

EXXXCELENTE!!!!!!!!!!!!!! Verissimo é sempre bom!
Já leu essa aqui dele:
Os últimos
E aconteceu que o Último Casal saiu da terra onde vivia e foi para o Oriente, pisando no que
restava da sua espécie: carcaças e ruínas.
E chegando no local onde um dia fora o Paraíso, e onde agora passavam dois rios podres em
meio à terra calcinada, deitou ao chão suas trouxas e preparou-se para morrer. Pois onde tudo
começara, tudo terminaria.
Fora ali, segundo sua crença, que Deus fizera o Primeiro Homem do barro e a Primeira Mulher
da sua costela. Era ali que devolveriam sua alma ao Senhor. E a Humanidade desapareceria da
face da Terra que ela mesma tornara estéril e inóspita.
Mas tomado de súbita revolta, o Último Homem clamou aos céus, e chamou ao seu Senhor, e
perguntou:
– Qual é?
E as nuvens sulfurentas se partiram e o rosto de Deus apareceu na brecha. E a expressão no
rosto de Deus era de surpresa, ou de quem acordara de uma sesta.
– Está falando comigo? – perguntou o Senhor.
– Estou.
– E quem é você?
– Sou o Último Homem. Descendente do Primeiro Homem. E esta é a minha mulher.
E a expressão no rosto de Deus era de perplexidade.
E perguntou o Último Homem:
– Por que fizestes isto conosco, Todo-Poderoso?
– Que foi que eu fiz?
– Nos deste o mundo, e nos mandaste povoá-lo, e tanto o povoamos que esgotamos tudo que
nele havia, e decretamos nossa própria extinção. Tanto fizemos para seguir suas ordens que
envenenamos a Terra, e a nós mesmos.
– Minhas ordens?!
– Sim. A que deste aqui, neste exato local, aos nossos primeiros antepassados.
Deus abafou um bocejo e disse:
– Não estou me lembrando. Tem certeza que fui Eu?
– Claro – disse o Último Homem. – Está bem, foi há milhões de anos. Mas milhões de anos não
são um minuto na mente do Senhor?
– Em tese, sim. Mas...
– O Paraíso, Senhor. Adão e Eva. Ele usava uma folha de parreira e ela...
– Ah! Agora me lembro. Qual foi a minha ordem?
– “Crescei e multiplicai-vos”.
– Deve haver algum engano...
O Último Homem perdeu a paciência.
– Como engano? O Senhor mandou, claramente, eles se multiplicarem, e encherem a Terra com
sua prole, e o resultado está aqui. Só sobramos nós. Não temos mais nada para comer. Não
temos mais água. A prole acabou.
– Mas eu não estava falando com eles.
- O quê?
– Estava falando com um casal de baratas, atrás deles!